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A partitura como elemento do processo de criação: o exemplo de Suspensão, de duVa

por Marcus Bastos, nov 2024.


A partitura é geralmente associada à escrita da música para posterior interpretação. Em Partitura de escuta: confluência entre sonologia e análise musical, Denise Garcia afirma que na “música instrumental, a partitura musical se constitui no principal suporte de mediação visual, tanto como ambiente de trabalho do compositor para desenvolvimento de suas ideias musicais, quanto como prescrição para a realização musical para os intérpretes, assim como objeto de leitura musicológicas” (Garcia, 2010, p. 1). Portanto, as partituras têm duas funções principais: servir de apoio para a criação das obras e servir de base para sua interpretação. Estas duas funções se sobrepõem, na medida em que criar a partir da escrita da partitura é um processo de transformação do acontecimento em escritura e, ao contrário, interpretar a obra é um processo de transformação da escritura em acontecimento.

O conceito de partitura se alargou, na música contemporânea, na medida em que surgem partituras que fogem às convenções estabelecidas da escrita musical, como, por exemplo, as partituras gráficas. As partituras gráficas alargam a função da partitura, seja porque permitem registrar sons que não são gerados pela execução tradicional de um instrumento, seja porque tornam o processo de interpretação menos restrito. Elas surgem justamente em consequência de um alargamento da paleta sonora explorado pela música criada a partir do século 20, que vai transitar por territórios sonoros que não se restringem mais ao conjunto de sons possíveis de serem representados na partitura tradicional. Em Partituras Gráficas: diversas possibilidades expressivas e interpretativas, Jonathan Andrade e Miguel D. Antar vão citar Karkoschka para localizar o surgimento das partituras gráficas:

Os compositores se direcionaram para áreas menos determinadas ou indeterminadas ao final dos anos 1950. As novas descobertas que fizeram, envolveram o interprete [sic] no ato da composição, espontaneidade, ação, circunstancia, música para ser lida textualmente, vários tipos de ruídos e a composição de qualquer situação sonora concebível, anti-música e teatro musical (...) compositores desenvolveram símbolos para anotar valores aproximados, logo seguidos por “gráficos musicais” - desenhos que direcionam a imaginação estética do interprete (KARKOSCHKA apud Andrade; Antar, 2015, p. 1).

Segundo Andrade e Antar, um dos pioneiros da partitura gráfica é o compositor estadunidense Morton Feldman:


Como exemplo de trabalho pioneiro nas propostas de notação gráfica, nos começos dos anos 50, podemos destacar o compositor norte-americano Morton Feldman. Depois de ter contato com algumas ideias do compositor John Cage, Feldman compõe duas peças que promovem uma linguagem especificamente visual:  Intersection 2, e Projection I. A primeira é uma obra curta, de um único movimento, com apenas 3 a 4 minutos de duração. A partitura está desenhada com uma série de figuras quadradas e símbolos específicos os quais determinam o timbre, o registro e a duração. Porém os símbolos são diferentes dos usuais utilizados nas partituras convencionais, como são as durações determinadas pela barra de compasso e a correspondente subdivisão dos tempos em notas (Andrade; Antar, 2015, p. 2).

Esta convenção de estabelecer uma sequência de quadrados como uma unidade de sentido e inserir números dentro de cada quadrado para indicar trechos da composição é semelhante ao critério que será usado por duVa na partitura de Suspensão. Portanto, fica claro que há uma relação entre as estratégias dos músicos que exploraram a partitura gráfica como recurso para dar conta de sua paleta sonora ampliada e as estratégias dos artistas que desenvolveram partituras para suas performances audiovisuais. A música contemporânea e a performance audiovisual são linguagens que tem diálogos evidentes, para além deste uso de um procedimento de composição e interpretação compartilhado. Outro aspecto de semelhança entre a partitura de Feldman e a partitura de duVa é o recurso ao texto. Em seu artigo, Andrade e Antar sinalizam para este aspecto da partitura:


Nessa peça, as alturas dos sons, assim como as dinâmicas e articulações são de livre escolha do intérprete; cabe destacar que os desenhos e grafismos apresentados por Feldman também incluíam pequenos textos que funcionam como instruções para a realização da peça. O que estava sendo projetado por Feldman é uma ferramenta comunicacional capaz de promover diversas interpretações, referentes a conceitos como altura, timbre, duração e textura, antes presas a determinadas convenções musicais históricas (Andrade; Antar, 2015, p. 2).

Esta diversidade de interpretações se relaciona ao aspecto aberto tanto de parte do repertório da música contemporânea quanto de parte do repertório da performance audiovisual. Este aspecto aberto deste tipo de composição depende de um estilo de notação que permita lidar com a variedade de interpretações possíveis. Não se trata de improviso, pois existe um roteiro delineado, mas são composições abertas ao indeterminismo, conforme notado por Andrade e Antar:


A notação gráfica traz para os compositores a possibilidade de trabalhar com o indeterminismo. As grafias podiam ser interpretadas de inúmeras maneiras. Junto a estas propostas de composição, conceitos relacionados com a improvisação também foram trabalhados e discutidos pelos precursores da época. Nesse sentido, Earle Brown, com sua peça icônica December 1952, explora o indeterminismo e a improvisação por meio da grafia experimental (Andrade; Antar, 2015, p. 3).

Diferente da interpretação na música canônica, a interpretação na música contemporânea, assim como na performance audiovisual, tem um grande grau de liberdade. Neste sentido, o performer é criativo. É por este motivo, que é possível pensar a interpretação, neste contexto, como algo próximo do processo de criação em tempo real. Apesar de existir uma dramaturgia prevista por quem escreveu a partitura, trata-se de uma dramaturgia indeterminada. Ela serve como uma matriz geradora de sentidos possíveis que estão sujeitos às decisões do intérprete, que movimenta este campo de possibilidades com grande liberdade.


Apesar de menos comum, a partitura também é usada na criação e na interpretação de performances audiovisuais. Um exemplo é a já citada partitura de Suspensão, de duVa. A partitura, neste contexto, é um elemento do processo de criação. No ambiente da performance audiovisual contemporânea, o intervalo entre a partitura e a performance da obra é o intervalo entre algo que só existia em potência e algo que passa a existir concretamente. O mesmo acontece na música, como já ficou claro a partir dos exemplos apresentados anteriormente que mostram como a música contemporânea mudou o formato das partituras. Esta passagem do virtual ao concreto é a passagem que acontece durante o processo de criação das obras de arte, que no caso da performance audiovisual tem dois tempos: a concepção da obra e o acontecimento da obra. Acontecimento no sentido de algo que se dá em ato, nas durações imediatas do tempo real. 


Por que é possível pensar a partitura audiovisual desta forma? A partitura musical, pelo menos em seu formato convencional, é um mapa fechado da composição. Cada interpretação muda nuances, mas a obra se repete de forma relativamente parecida. No caso da composição audiovisual, a partitura é mais aberta (como foi visto, o mesmo se aplica à parte da música contemporânea). Não existem convenções que determinem a execução de uma peça de determinada maneira, portanto, o artista tem maior liberdade criativa ao executar a peça. Isto significa que as decisões que ele toma ao vivo, durante a performance da obra, não são apenas da ordem da interpretação, mas da ordem da criação. É uma criação ao vivo, que se renova a cada performance, mesmo quando a composição audiovisual tem uma partitura.


Por isso, é possível argumentar que a partitura de uma performance audiovisual como Suspensão, apesar de não ser um documento de processo, desempenha um papel análogo. Vale observar a definição de documento de processo proposto por Cecilia Salles, em consequência de um esforço para ampliar o escopo da crítica genética feito por seu Grupo de Pesquisa. Em Gesto inacabado, ele afirma que “esses documentos, independentemente de sua materialidade, contêm sempre a idéia de registro. Há, por parte do artista, uma necessidade de reter alguns elementos, ·que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa concretização” (Salles, 1998, p. 17). A partitura é um auxiliar da concretização de uma obra. O caráter mais aberto e o papel de auxiliar de concretização da obra transformam as partituras de performances audiovisuais em elementos do processo de criação.


A partitura tem uma história breve no campo da performance audiovisual, sendo um dos primeiros documentos do tipo as partituras de Mary Hallock-Greenwalt, patenteadas nos anos 1920. Em A materialidade do efêmero – A Identidade das Artes Performativas Audiovisuais, Documentação e Construção da Memória, Ana Carvalho afirma que são “da autoria de Greenwalt duas formas de anotação (patenteadas)”. Uma delas é a “partitura para luz em papel, que é “constituída por nome, números, marcas, símbolos, hieróglifos, e outros” (Betancourt, 2005, p. 35) e que ser para acompanhar uma peça musical” (Carvalho, 2012, p. 30). No texto, Carvalho cita um trecho de Betancourt que explica em mais detalhes as partituras de Hallock-Greenwalt:


[a sua] invenção é relativa à anotação, através da qual efeitos de iluminação progressivos ou outros, destinados ao acompanhamento de sons musicados, bem como ao seu visionamento de forma independente, podem ser produzidos por um operador que controla os ditos efeitos de luz, numa relação mais ou menos arbitrária relativamente aos sons musicais ou para o efeito desejado, no caso do seu visionamento de forma independente; esta anotação para luz pode ser escrita ou disposta adjacentemente em varetas, como uma banda sonora, se utilizado com música, ou colocados numa folha independente, se for utilizado para o seu visionamento de forma independente, ou colocado sobre folhas perfuradas e utilizadas com instrumentos musicais operados mecanicamente. (Betancourt apud Carvalho, 2012, p. 30).

É o mesmo princípio da partitura de Prometheus, o poema do fogo, de Alexander Scriabin. Existe uma faixa sonora e uma faixa visual, ambas articuladas por meio de uma notação que as relaciona. No caso de Prometheus, a partitura sonora é convencional, escrita na forma da pauta musical padrão. As indicações da parte de luz da peça aparecem acima da partitura sonora, onde normalmente são anotadas as indicações de expressão da partitura. A diferença em relação às partituras de Hallock-Greenwalt está na forma de notação, que foge a este formato mais estabelecido da música de concerto. Como já foi dito, esta forma mais ampla de notação permite uma interpretação mais aberta, o que é coerente com os processos da performance audiovisual.


A performance audiovisual é um gênero de linguagem que explora a invenção ao vivo e o improviso. Por este motivo, mesmo quando ela é objeto de planejamento, como é o caso de Suspensão, de duVa, seu resultado é mais aberto do que em uma composição prevista em todos os seus detalhes (como no caso de uma peça musical do romantismo, por exemplo). Assim, ao fazer uma partitura de performance audiovisual, o objetivo é permitir ao artista entender uma matriz geradora de sentidos que vão ser articulados ao longo do desenvolvimento da obra. Trata-se de uma obra aberta. Parece um paradoxo, na medida em que planejamento e abertura parecem se situar em pólos opostos, mas não é: ao construir uma partitura que não define de forma fixa as possibilidades de interpretação, é possível estabelecer um ponto de equilíbrio entre planejamento e improviso.


A partitura de Suspensão, de duVa, mistura gráficos, textos e sinais, para organizar a forma de apresentação da obra com duração de aproximadamente 40 minutos, em que saltos do performer no palco são capturados em tempo real e servem de ponto-de-partida para uma composição que, como o título sugere, pretende explorar as possibilidades poéticas de um corpo em suspensão. Como não existem convenções no desenvolvimento da partitura de performance, os critérios de criação da partitura são do próprio artista, e misturam convenções estabelecidas (como o uso das palavras Input e Output ou o sinal de barra para indicar o uso de uma cena em cada canal), o uso de referências ao teclado do computador usado como um controlador do Isadora, o que implica em um conjunto de controles customizados pelo artista (como, por exemplo, a indicação da tecla S como on ou off do frame de estrobo) e o recurso a sinais gráficos como traços e setas.


A partitura de Suspensão tem por objetivo permitir que outro artista além do criador da performance possa interpretar a peça, usando seus próprios vídeos e sons e explorando uma dramaturgia que lhe pareça coerente com a notação. Por se tratar de uma notação aberta, os resultados possíveis podem ser afastar significativamente da interpretação do artista, o que implica compreender a partitura como uma matriz para diferentes processos de criação. Trata-se de uma partitura aberta, em que a notação funciona como um princípio organizador de um campo amplo de possibilidades. Até o momento, não foram feitas outras interpretações da peça além do próprio artista, o que torna impossível saber que variações seriam propostas por outros criadores.


Na interpretação de duVa, ele segue de forma bastante precisa suas próprias orientações, optando por uma interpretação que podemos considerar como bastante fiel às indicações da partitura. De fato, sua interpretação funciona como uma espécie de guia para compreender a partitura, pois a notação aberta, quando comparada com a performance resultante, ganha sentidos mais precisos. Por este motivo, pode-se considerar que há dois caminhos possíveis para interpretações de Suspensão por outros artistas: uma mais aberta, que leva em conta a partitura e explora a liberdade criativa que ela permite; outra mais fechada, que leva em conta a partitura e a documentação da obra apresentada por duVa e procura ser mais fiel à proposta original. 


Ambos os caminhos têm o seu valor, pois tanto as interpretações mais livres quanto as interpretações mais próximas da interpretação do artista têm suas potências específicas (1). No entanto, apenas as interpretações mais livres resultam no uso da partitura como um elemento do processo de criação, conforme sugerido no título deste artigo. A notação aberta é o que permite esta articulação entre um corpo de pensamentos em forma gráfica e um corpo de pensamentos em forma de corpo, imagem em movimento e som. Para entender este intervalo, vamos examinar mais de perto como se deu a interpretação do próprio artista para a partitura de Suspensão, na apresentação feita em 30 de julho de 2006.


  • (1) A interpretação baseada na partitura e na documentação, mais próxima à versão original do artista, tem valor de circulação do repertório das performances audiovisuais. No circuito da música, a interpretação tem o papel de manter o repertório existente de composições em circulação, tornando possível que o público, ao frequentar salas de concerto, tenha acesso a peças históricas e contemporâneas, em interpretações que buscam recriar as intenções do compositor ao criar sua peça. No circuito da performance audiovisual, é mais comum a apresentação de peças originais dos artistas, fazendo com que o público não tenha acesso ao passado. Se, por meio de partituras, for se tornando possível interpretações de performances antigas em versões que procuram recriar a intenção do artista, isto tornaria possível a constituição de um circuito em que além das novidades do momento, o público também teria acesso à história da performance audiovisual.


A peça começa com a sala vazia e o performer nu sentado atrás de seu computador, que está no chão do palco, posicionado de lado para as duas telas de projeção que ocupam a parte mais central do palco. Conforme o público entra, o título da performance é exibido ao som de ruídos e frames brancos intercalados, que geram um efeito estroboscópico. Isto está anotado na partitura por meio de um grid que identifica os sons de número 25 em dois canais de áudio. Os volumes do som estão anotados na coluna correspondente (V) ao lado da identificação do arquivo, por meio de um pequeno sinal gráfico que simula a posição do botão de controle do MIDI. Também há indicações de velocidade dos arquivos de som na coluna correspondente (Sp). 


Além disso, há uma indicação em laranja de uma seta apontada para baixo, na lateral direita da matriz. Ela tem como legenda a palavra EASY. Esta indicação corresponde ao andamento da peça. Ela indica que as ações descritas nesta parte da partitura devem ser desempenhadas de forma lenta, com tranquilidade. Esta configuração corresponde a um primeiro estado da performance. Seria possível pensar que cada bloco da partitura corresponde a um diferente estado da performance e que o percurso por estes blocos corresponde às mudanças de estado que gradualmente vão constituindo a dramaturgia da peça. Este momento inicial funciona como uma espécie de prelúdio ao desenvolvimento da peça. Este primeiro estado dura até o público terminar de entrar no teatro, quando tem início o segundo estado da performance, que funciona como uma preparação para a condução da peça.


No segundo bloco, é aberta a câmera ao vivo 1. Enquanto o título e os estrobos continuam sendo exibidos, o performer caminha até o meio das duas telas e faz uma série de saltos. Conforme a partitura, “[s]ua imagem é captada ao vivo pela câmera que é mixada com os movies A/B e em seguida mandada para as 2 telas de projeção. Quando o performer acaba a série de saltos ele retorna para atrás do seu computador”. Durante esta ação, continuam soando os ruídos de número 25 na mesma altura e velocidade. Também continuam sendo exibidos o vídeo negro e título intercalados com os “blocos de flash frame curtos” que produzem o efeito estroboscópico. Nesta cena é adicionado o efeito marcado pela letra J, que a partitura não explica qual é. Neste caso, a interpretação fica aberta, pois seria necessário o acesso ao patch do artista para saber qual o efeito em questão.


Este é outro aspecto aberto, que transforma a partitura em um elemento do processo de criação da performance Suspensão. Certos detalhes de interpretação dependem dos arquivos e do patch montados pelo artista para a interpretação da obra. Ao recriar a performance a partir da partitura, um artista diferente do criador da peça vai recorrer a outros arquivos e outro patch, o que implica em um outro resultado. Nada impede que a performance seja, inclusive, recriada em um software diferente do Isadora, o que resultaria em uma paleta audiovisual completamente diferente, tendo em vista que cada software tem seu conjunto de possibilidade.


Durante a execução da peça, as imagens gravadas ao vivo no estado 2 podem ou não ser usadas durante a performance, mas independente disso todo o conteúdo exibido é manipulado em tempo real, o que resulta em uma sensação de risco e improviso. Conforme foi discutido no artigo O diálogo da performance audiovisual contemporânea com o cinema experimental e a pintura em Suspensão, de duVa, isto gera um potencial de tensão entre o gravado e o ao vivo. Esta condição ao vivo da peça (2), para usar o termo de Auslander, é outro elemento que resulta em um interstício entre partitura e interpretação. Por se tratar de uma obra editada em tempo real, ela se oferece ao público em ato, o que reitera seu caráter processual. É como se o público pudesse ver um artista pintando seu quadro em tempo real.


  • (2) Philip Auslander, no livro homônimo, uso o termo liveness para se referir para a condição ao vivo. É difícil traduzir a expressão para português usando um termo único, como no inglês. A tradução literal seria aovivocidade, que não soa muito bem. Por este motivo, opto por traduzir o termo por condição ao vivo, que recria a ideia sem gerar a sonoridade estranha.


Antes do início do terceiro estado da performance, o artista faz uma segunda série de saltos, numa sequência em que o título é exibido temporariamente sem efeito e há um intercalado entre o estrobo desativado e ativado. Estas variações vão construindo uma dramaturgia já desde o momento da exibição do título da performance, que combinado com os saltos, vistos ao vivo e duplicados na tela, promovem uma aclimatação do público que o prepara para o desdobramento do trabalho. Todo este prelúdio da peça é feito em movimento suave, promovendo um estado de inserção gradual do público na obra.


Em seguida, tem início o movimento 1, o primeiro bloco da performance que é constituído de três momentos distintos. Na partitura, continuam os ruídos (arquivo de áudio 25) em dois canais, mas agora também há o acréscimo do arquivo de áudio 30, indicado como carretilha. Os arquivos de vídeo indicados neste momento da performance são o 1, o 2 e o 4, que inicialmente aparecem duplicados nos canais A e B e na última parte deste estado temos o vídeo 2 no canal A e o vídeo 4 no canal B. Este movimento 1 implica em um deslocamento lateral da imagem do canto direito para o canto esquerdo da tela, com dois efeitos que geram um rastro na imagem. A esta altura da peça o sentido de suspensão ainda não está explícito, pois o movimento do corpo se dá no sentido lateral. Mas a linguagem da peça é estabelecida de forma nítida, na medida em que temos um tratamento de contraste e tonal que vai predominar (com variações), ao longo da performance, e um conjunto de efeitos que vai ser usado de forma recorrente.


Mesmo na horizontal, a imagem lembra visualmente o Nu descendo uma escada, de Marcel Duchamp (imagem que explora o espaço em sentido vertical). A sucessão de corpos encadeados lembra a sensação de multiplicação da obra de Duchamp e explora uma convergência entre espaço e tempo, fazendo com que a montagem no espaço seja uma das estratégias de linguagem estruturantes da performance, como foi discutido no artigo O diálogo da performance audiovisual contemporânea com o cinema experimental e a pintura em Suspensão, de duVa. Este recurso ao espaço gera um visual que lembra certas obras de artes visuais, como Bacon e Duchamp, ou mesmo a fragmentação do cubismo ou a cronofotografia de Marey (3), mas o sentido deste tipo de montagem vai além, pois como foi dito se situa na intersecção de espaço e tempo.


  • (3) Esta relação é apontada por Patricia Moran, em Performances audiovisuais: uma poética entremeios.


Deste ponto-de-vista, é possível pensar que, do mesmo modo que a teoria da relatividade desafia a concepção newtoniana de gravidade, o mesmo acontece com a performance de duVa. As imagens em movimento durante Suspensão transitam pela fina malha que constitui o contínuo espaço-tempo na concepção einsteiniana de universo. Mais que diálogos com a visualidade dos vários artistas que exploraram a decomposição do espaço ou com a cronofotografia de Marey, a obra de duVa é uma experiência que concretiza o conceito de gravidade da teoria da relatividade e mantém o corpo suspenso explorando a multiplicidade de estados possíveis ao longo dos saltos filmados pelo artista. O corpo só cai se o observador estiver posicionado de tal forma que esta trajetória seja perceptível.


O segundo momento do movimento 1 segue com os sons 25 e 30, em um andamento indicado por um traço em “S”s com a palavra “down” abaixo (o bloco anterior estava indicado por “up”). Nesta sequência são inseridos os vídeos de 5 a 10 e ao final há uma indicação para mudar a base sonora. Este bloco todo é montado sem efeitos, mas os vídeos apresentados têm um tratamento visual constante, o que gera uma sensação de continuidade ao longo de toda a performance. A esta altura começa a ficar evidente uma lógica de organização da performance, que trabalha com os sons de forma mais aleatório e com os vídeos de forma sequenciada, o que faz supor que após montar o material o artista estudou uma sequência e foi renomeando os vídeos de acordo com os resultados que ele desejava obter.


A dramaturgia da performance se baseia na articulação entre as cenas de saltos e eventualmente cenas do artista agachado ou deitado. Estas imagens vão se intercalando rapidamente, o que gera um efeito de microcortes ao longo da performance (como foi analisado em O diálogo da performance audiovisual contemporânea com o cinema experimental e a pintura em Suspensão, de duVa). Esta estrutura de microcortes resulta em passagens graduais que funcionam como equivalentes visuais da música minimalista (um padrão que vai se repetindo indefinidamente e muda aos poucos, de forma que a mudança é ao mesmo tempo pouco perceptível e súbita, num efeito de vibração gerado pela pulsação constante do encadeamento).


O terceiro momento do Movimento 1 é mais complexo. São usados os arquivos de som 01 e 35 e os arquivos de vídeo 11 a 21. A transição para a cena acontece com o efeito indicado por S ligado. A passagem dos vídeos 11 ao 14 acontece com o efeito indicado por S ligado. Esta estrutura intercalada é uma das formas de organização da performance, apesar que as sequências têm uma complexidade que torna a estrutura pouco evidente. Levando em conta a alternância entre cenas intercaladas e cenas não intercaladas assim como outras variações que acontecem ao longo da performance, como o uso de efeitos, a cadência dos vídeos que vão sendo substituídos e a composição com os sons, tudo se transforma numa tessitura vibratória, conforme foi apontado por Christine Mello, no artigo Suspensão e o corpo vibrátil: experiências audiovisuais em luiz duVa.


Estas sutilezas da partitura levam a uma interpretação bastante fluída por parte de duVa. Fica claro que a partitura funciona como uma estrutura de base a partir da qual ele ativa suas ideias audiovisuais. Diferente de certas performances mais abertas, Suspensão tem uma estrutura bastante definida e os momentos de improviso são indicados de forma explícita, como acontece no bloco seguinte, nomeado de GRID. Neste bloco, são usados os sons de número 19, 26 e 33 e os vídeos do 22 ao 31. 


Este bloco da partitura é diferente dos demais por dois motivos. Como já citado, ele tem uma indicação de uma parte de improviso. Além disso, ele tem um desenho na parte direita da partitura, onde ficam as indicações de vídeo. É uma tabela que indica os arquivos de vídeo por meio de letras e relaciona as cenas em paralelo, com cenas diferentes nos canais A e B. Este bloco também marca uma virada na lógica de organização da partitura, pois a partir desta parte os blocos passam a receber nomes menos abstratos (o que só volta a acontecer no bloco final, chamados Saltos Run). O uso de nomes, todavia, não está ligado a uma mudança radical na configuração audiovisual da performance. Sem conhecer a partitura, não seria possível inferir algum tipo de mudança mais na lógica de organização da obra, o que faz pensar que os nomes usados servem mais como dispositivos mnemônicos para o artista se lembrar de certas cenas que títulos descritivos com a intenção de explicar textualmente o conteúdo audiovisual daquela parte da performance.


Uma das questões importantes de se pensar no universo das partituras de performance audiovisual é sua já mencionada maior abertura. Isto faz com que a interpretação seja aberta e muitas vezes ligadas a uma compreensão dos conceitos organizadores da partitura. Diferente de uma partitura de música na notação convencional, em que o músico treinado consegue ouvir mentalmente a composição conforme faz a leitura da partitura, no caso de uma partirua como a de Suspensão, não é possível antecipar a obra a partir da notação. Isto se deve ao fato de que os conteúdos são indicados por números, o que transforma a partitura numa espécie de mapa, em que os blocos são agrupamentos de mídias.


Esta estrutura faz com que existam duas possibilidades de recriação da performance. O artista pode enviar as mídias e o patch para quem vai interpretar a performance ou quem vai interpretar a performance cria novas mídias e um novo patch. Como já foi dito mais no início deste artigo, isto resulta em duas formas de interpretação, uma mais livre e criativa e outra mais voltada para a recriação das intenções iniciais do artista. A primeira delas é a que está vinculada ao uso da partitura como elemento do processo criativo, enquanto a segunda é mais voltada para a memória. Ambas são importantes mas fica claro que a intenção de duVa com sua partitura era estimular o primeiro tipo de interpretação, mais aberta e criativa, caso contrário ele deixar as mídias e o patch da obra disponíveis para download em seu site.

A próxima parte, chamada Gêmeos usa os sons 11, 35 e 36 e os vídeos 32 a 36. Esta é uma cena mais simples em termos de notação, pois apresenta apenas as indicações de áudio e vídeo, assim como a anotação do efeito indicado pelo S ligado. Nestas primeiras cenas com nome, não há indicações em laranja do lado dos GRIDS, como acontece nas 3 partes do movimento 1. Estas indicações em laranja são instruções de expressão, que tem a mesma função que as anotações do alto das partituras convencionais de música com expressos como alegro e sinais de crescendo e diminuindo.


Há um paradoxo na relação entre a performance Suspensão e sua partitura. Como na música eletroacústica, Suspensão é uma obra mais ligada à difusão em tempo real que à geração de conteúdos ao vivo. Mesmo quando as cenas capturadas no início da performance são usadas, são vídeos gravados num momento anterior ao de sua difusão. Não se trata de uma câmera em direto, que transmite as imagens em tempo real, mas de uma cena exibida, em que a dimensão do tempo real fica restrito ao escopo da montagem. Portanto, existem duas particularidades de Suspensão quando se pensa em sua condição ao vivo. É uma composição audiovisual e não um improviso, portanto a dimensão do tempo real está restrita às decisões de interpretação. É uma performance com cenas exibidas e não câmera em direto, como já foi dito, portanto a dimensão do tempo real está restrita às decisões de montagem, como também já foi dito.


A próxima parte, chamada Macaco, também tem uma estrutura mais simples, com as indicações de áudio (29, 35 e 36) e vídeo (37 a 40), mas volta a aparecer a indicação em laranja ao lado do grid com as mídias sonoras. A indicação nesta parte lembra um símbolo de fusível dos esquemas eletrônicos. Também há um novo elemento, uma indicação em laranja de I/O abaixo do vídeo 40. Na próxima parte da performance, chamada RUN, há uma estrutura semelhante, com a diferença que o efeito indicado por S (os blocos de frame estroboscópicos) é ligado no meio do percurso de vídeo. O uso do recurso estroboscópico ao longo da performance é uma característica que o artista trás emprestado das pistas de dança, simulando o efeito frenético num ambiente de palco. Nesta cena, a indicação de I/O aparece em quase todos os vídeos.


Já se encaminhando para o final da performance, a próxima parte se chama Closes. Nesta cena são usados os áudios 4 e 5 e os vídeos 50 a 54. Há uma indicação em laranja ao lado do GRID com uma seta para baixo, outra para cima e uma terceira para baixo, de tamanhos e em posições diferentes. Nesta cena, além da indicação de I/O, há números abaixo, nos dois primeiros vídeos. Para encerrar, há quatro partes de um bloco chamado Saltos RUN, com os áudios 4, 5, 9 e 29 e os vídeos de 55 a 66. Suspensão é uma das poucas performances audiovisuais que tem uma partitura publicada. É muito comum os artistas terem guias visuais para suas apresentações, mas geralmente elas ficam restritas ao uso exclusivo do artista. Ao publicar sua partitura, duVa estimula a interpretação de sua performance, contribuindo para gerar uma cultura do repertório que não existe no âmbito do audiovisual ao vivo.


Referências Bibliográficas:


Andrade, Jonathan; Antar, Miguel D. Partituras Gráficas: diversas possibilidades 

expressivas e interpretativas. Vitória: XXV Congresso da Associação Nacional de 

Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2015.

Auslander, Philip. Liveness: performance in a mediatized culture. London: Routledge, 

2022.

Carvalho, Ana. A materialidade do efêmero – A Identidade das Artes Performativas 

Audiovisuais, Documentação e Construção da Memória. Porto: Universidade do 

Porto, 2012. Dissertação de Doutoramento em Comunicação em Plataformas 

Digitais.

Garcia, Denise Hortência Lopes. Partitura de escuta: confluência entre sonologia e 

análise musical. Rio de Janeiro: I Simpósio brasileiro de pós-graduandos em 

música, 2010.

Mello, Christine. “Suspensão e o corpo vibrátil: experiências audiovisuais em luiz duVa”, 

Moran, Patricia. Performances audiovisuais: uma poética entremeios. São Paulo: USP, 

2020.

Salles, Cecilia Almeida. Gesto Inacabado. Processo de criação artística. São Paulo: 

Annablume, 1998.


Este artigo foi publicado originalmente no E-book:



 
 
 

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