Sobre o laboratório em residência rural.scapes.
“Estes trabalhos só fazem sentido se você entrar dentro da paisagem”. Se fosse necessário, essas palavras do artista Luiz Duva (duVa) poderiam resumir em apenas uma frase a experiência de acompanhamento crítico no laboratório em residência rural.scapes, organizado por Rachel Rosalen e Rafael Marchetti em uma fazenda próxima à Serra da Bocaina. A frase de duVa explicita aspectos importantes da residência: a presença e a imersão. Entretanto, não era apenas uma vivência rural afastada da intensa fricção urbana. A experiência em rural.scapes demandava pensar em como ampliar questionamentos, que normalmente são apresentados em espaços expositivos tradicionais, em outro local determinado pelo acaso da natureza e pela impermanência das especificidades. De certo modo, os trabalhos podem ser observados pela perspectiva das realizações site specific dos anos 1960/70. Por esse viés, o que foi produzido em rural.scapes só existiu lá. Mas, por outro lado, pode-se encontrar ressonâncias, possibilidades de continuidades e traços da documentação que criem novos trabalhos. Apesar da incompletude e subjetividade de um texto crítico, felizmente, posso fazer uso de mais alguns parágrafos sobre o processo artístico de Alessandra Cianelli (Itália), Anja Ganster (Suiça), Enrico Ascoli (França), Johan Suneson (Suécia), Luiz Duva (Brasil), Marit Lindberg (Suécia) e Patrício Dalgo (Equador).
#paisagem – O trabalho de duVa já é conhecido por suas videoinstalações sinestésicas em museus e galerias. Em rural.scapes, o artista ampliou suas questões para uma dimensão de land art: levou suas luzes para os contornos das montanhas esfumaçando as bordas do céu estrelado. Também monumentalizou (com lâmpadas estroboscópicas) signos da escravidão no meio do pasto que posteriormente tornaram-se imagens eletrônicas que invadiram a Casa Grande. Se o trabalho de duVa demanda à imersão interior por meio da criação de imagens mentais, aqui, elas foram ativadas através de uma paisagem expandida.
#landschaft – Anja Ganster é uma re-contadora de “novas” histórias que entrelaçam a ficção entre o passado e o presente. O filme de Anja estava na parede do seu quarto em diversas camadas: polaroides, pinturas de paisagens e retratos, cartões postais, que cobriam e descobriam, com fusões e transições, plantas, objetos, testes de cores da paisagem… e a borra do café. Todos os elementos permitiam “ganchos” de novas conexões. Por um lado, a montagem do trabalho de Anja podia ser vista como as antigas exposições por acumulação que marcaram o século XIX. Por outro, era um sistema aberto em que cada um podia chegar mais perto ou se afastar para estabelecer sua própria narrativa.
#landskap #paisaje – As ações de re-contar histórias também conectaram o trabalho de Johan Suneson e Patrício Dalgo para desenharem suas paisagens junto com as crianças da comunidade de São José do Barreiro, cidade mais próxima a fazenda que sediava a residência. Johan ministrou oficinas em que convidava os participantes a traçar as linhas dos elementos que compõem uma narrativa. Esses olhares foram materializados em histórias em quadrinhos que, ao mesmo tempo, permitiam uma espécie de registro sobre a vivência local. Considerando a possibilidade de arquivar e ao mesmo tempo interagir com a experiência efêmera de algumas tardes de encontros, Johan organizou essas produções em um fanzine. Já, Patrício, após as oficinas, em uma mistura de olhares, entre o eu e o outro, desenvolveu uma apresentação live image analógica por meio da projeção de desenhos em um retroprojetor. Com uma didática de artista-professor partiu do figurativo para chegar ao abstrato através de intervenções no mesmo retroprojetor. Posteriormente, levou o bidimensional para o tridimensional instalando projetores construídos com objetos caseiros e de baixo custo (através da ideia de D.I.Y. – Do It Yourself, “faça você mesmo”) no porão da Casa Grande. A sinestesia do cinema foi transposta para o espaço: entre as imagens fixas e em movimento, cada um que visitou essa videoinstalação também podia buscar por memórias recorrentes e/ou inventadas.
#paesaggio #paysage – Enrico Ascoli coleciona sons. Seu projeto partia de um ensaio – “The Flora of Serra da Bocaina” escrito pela bióloga brasileira Berta Lutz em 1927 – que o artista encontrou em uma biblioteca da Sorbonne em Paris. Mas, o pensamento teórico rapidamente se transformou no mapeamento e coleta da flora da região. Enrico redesenhou o som ao redor selecionando raízes, folhas, sementes, frutas e outros objetos que misturavam história, natureza, sociedade e tecnologia eletrônica. Esses elementos tornaram-se instrumentos musicais, que propiciaram a orquestra de Enrico, uma composição originada de uma segunda exploração. Sua coleção evidenciava um microcosmo do macrocosmo, ao mesmo tempo em que, cada objeto no momento em que recebia a ação de ser tocado tornava-se outro microcosmo.
#paesaggio – Alessandra Cianelli, assim como Anja e Enrico, também procurava construir uma coleção. Em sua busca por histórias, a artista trouxe a ideia das misturas das línguas crioulas para o que vivenciávamos no dia a dia na fazenda: português, italiano, inglês, sueco, alemão, francês, espanhol, portunhol… Alessandra evidenciou a processualidade da residência em seu arquivo impermanente construído por meio de sementes e conversas. Suas propostas perfomativas reconheciam a intensidade do presente ao mesmo tempo que ansiavam por algum tipo de permanência.
#landskap – “Ô de casa!”: a paisagem observada por Marit Lindberg foi permeada pelo acaso de situações culturais e sociais. A artista reproduziu a performance “Músicas de muitas casas”, cuja versão anterior foi realizada com os moradores de um único prédio na Suécia. Em São José do Barreiro, foi diferente: como em uma procissão, o público ia caminhando junto pelas ruas. Algumas janelas se abriam, e habitantes da cidade cantavam, tocavam, dançavam e recitavam poesias. O trajeto era estabelecido pelo processo em movimento que ia acontecendo no presente. E, assim, o cortejo continuava sendo surpreendido pelo mapeamento de traços culturais entre o “pop”, o popular e o tradicional.
# rural.scapes – Nas minhas andanças por estas paisagens pude estender meu olhar para uma série de ideias/conceitos/questionamentos que conectavam a diversidade dos trabalhos artísticos. O meu mapa incluiu a imersão na paisagem, a intensidade do acaso, a criação de coleções e/ou a produção de arquivos, as oposições e confluências entre vivenciar e documentar, a parcialidade e a subjetividade da documentação, a duração do tempo rural. Por fim, em rural.scapes, experimentava-se uma processualidade latente que emana ser performada em futuras memórias.
Ananda Carvalho, julho de 2014.
(curadora e crítica de arte).
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